Ciclo Ruy Duarte de Carvalho no Centro Cultural de Belém
CICLO RUY DUARTE DE CARVALHO
ATÉ 17 FEVEREIRO 2008
CENTRO CULTURAL DE BELÉM
13 FEV
Quarta-feira, Sala de Ensaio, 21h
Preço: 2€
NELISITA: NARRATIVAS NYANEKA
14 FEV
Quinta-feira, Sala de Ensaio, 21h
Preço: 2€
MOIA: O RECADO DAS ILHAS
O cinema de Ruy Duarte de Carvalho será apresentado em dois diferentes suportes: a projecção das duas longas-metragens de ficção que realizou, Nelisita: narrativas nyaneka, de 1982, e Moia: o recado das ilhas, de 1989, e a apresentação dos seus documentários, no âmbito da exposição que decorrerá na Galeria Mário Cesariny.
CINEMA E ANTROPOLOGIA PARA ALÉM DO FILME ETNOGRÁFICO
RUY DUARTE DE CARVALHO
Ao longo dos 3000km percorridos desde Luanda até ao interior do deserto do Namibe, havíamos atravessado quatro das nove áreas linguísticas do país e nada menos de quinze populações etnicamente diferenciáveis. Desta viagem resultaria uma série de documentários cuja estruturação e montagem nos impuseram uma reflexão que muito rapidamente nos conduziria para além do domínio do cinema. Para realizar um trabalho adaptado à realidade nacional impunha-se-nos assumir uma consciência alargada ao conjunto das componentes que faziam da totalidade do país o lugar de uma única euforia. Uma euforia perante a qual, no entanto, nós não podíamos deixar de experimentar um sentimento ambíguo de encantamento e de angústia, espanto e entusiasmo, tão numerosas e particulares se revelavam as suas expressões locais. Tornava-se-nos claro, assim, que deveríamos levar o nosso esforço de esclarecimento para além da simples tomada de consciência que animava então todos quantos se achavam em condições de ler e de informar-se. De facto, se a História nos ajudava a compreender algumas das particularidades detectadas nos 1.250.000 km2 de território nacional, nomeadamente as que resultavam de um desenvolvimento desigual das forças produtivas, como tinha passado a dizer-se então, ela não se mostrava suficientemente operatória para prover à compreensão das diferenças de ordem cultural que se nos deparavam cada vez que nos víamos confrontados ao material que desfilava na mesa da montagem.
Uma vez mais, e à semelhança do que nos havia acontecido em relação ao exercício de outras actividades, se nos impunha recorrer a outra forma de conhecimento e informação, a antropologia, enriquecida agora pela reflexão francesa que nos chegava através de obras para as quais Angola tornada independente constituía então um terreno particularmente receptivo. A necessidade de recorrer à antropologia iria revelar-se ainda mais premente quando alguns meses depois decidimos orientar a nossa actividade para o tratamento de problemas afectos às populações do sul do país, escolhendo o sector rural como campo de acção por ser esse o terreno que melhor conhecíamos, aquele a que afectivamente nos sentíamos mais ligados e, sobretudo, porque dizia respeito à realidade de mais de 80% da população angolana.
Deste novo projecto resultaria uma série de 10 documentários que foram apresentados, a alguns públicos, precedidos do texto seguinte:
“O trabalho completo totaliza cerca de seis horas de cinema, repartidas em 10 filmes cuja duração varia entre 20 e 60 minutos, e constitui uma abordagem preliminar e global ao presente da população mumuíla, do grupo étnico-linguístico Nyaneka-Humbe, sudoeste de Angola”.“Cinema etnográfico? Sê-lo-á também aquele cinema que, ocupado com situações actuais e problemas pontuais, não pode por isso dispensar a referência, a fixação e o tratamento de elementos ou dados culturais afectos aos domínios da antropologia, mas vivos e portanto actuantes no terreno do confronto (cultural, social e político) entre um passado cujas fórmulas se mantiveram para além e apesar da acção colonial (de memória ainda recente) e as propostas de futuro (actualização, modernização, progresso) que o tempo, os tempos, inexoravelmente impõe, impõem?”“A arena deste confronto é extremamente vasta quando as circunstâncias se conjugam de forma a condensar a História: colonização superficial, independência recente, urgência na acção política”.“Tyongolola, chefe de linhagem, cuja mãe é viva ainda e terá sido testemunha da instalação dos primeiros brancos na região, preside aos funerais de um sobrinho morto por acidente nas obras de uma barragem que se constrói a 20 km de sua casa”.“Entre a sede do antigo reino do Jau, onde todos os anos se cumpre ainda a cerimónia de encerramento do cortejo do boi sagrado, manifestação ritual que envolve toda a população do reino e pressupõe a cessação de qualquer actividade económica durante um período de dois meses, e a Universidade do Lubango, onde as novas gerações (futuros dirigentes, saídos alguns também desse mesmo antigo reino) são iniciadas nos termos de uma actuação adaptada aos imperativos de um modelo de desenvolvimento que se quer industrial, distam apenas 40 km”.“Que pensam, uns dos outros, do lugar que ocupam no mundo e do próprio mundo que ocupam aqueles que, perante a câmara, são chamados a depor?”“Nem a busca de sobrevivências culturais nem a sua subestimação. Nem a exaltação das propostas políticas nem a sua escamoteação. Uma linha de equilíbrio entre dois dinamismos: o de um tempo mumuíla e o de um presente angolano. Percorrê-la afoitamente, sensível à precariedade dos dias e das horas. Interrogar? Nem isso. Expor apenas, talvez, e garantir ao filme uma autonomia que lhe permita simultaneamente revelar-se válido como cinema, útil como referência (criar, encontrar nele um clima de síntese que facilite a leitura e a avaliação das situações) e fiel como testemunho. Talvez assim se consiga estabelecer uma delicada zona de compromisso entre quem fornece os meios, quem os maneja e quem depõe, se expõe perante os mesmos”.
Do exposto se infere qual é a nossa posição relativamente ao cinema que escolhemos fazer. O profissional de cinema tem plena consciência de que para fazer um trabalho de acordo com a realidade nacional deve munir-se de instrumentos de reflexão que lhe permitam escolher o que deve filmar e como fazê-lo. Ele sente-se autoconduzido à escolha de temas que legitimem o emprego do seu tempo de trabalho, e do da sua equipa, numa actividade não directamente produtiva e numa conjuntura em que a reabilitação da economia e da organização se impõe a todos como tarefa prioritária. Ele deve dotar-se, através do cinema, de uma capacidade de participação que se inspire sem ambiguidade no movimento de libertação que anima, a todos os níveis, o espírito de qualquer nação que adquire a sua independência política.
DA TRADIÇÃO ORAL À CÓPIA STANDARD, A EXPERIÊNCIA DE NELISITA
Sabemos que poderá parecer sacrílego o que vamos dizer a seguir, mas estamos cientes de que qualquer filme angolano, partindo de elementos culturais muito diferentes daqueles que normalmente alimentam os mercados do cinema, de uma maneira geral afectos a configurações sociais mais ou menos próximas de quadros ocidentalizados, tem que se haver com problemas muito específicos de leitura, da ordem pelo menos dos que ocorrem com outras cinematografias regionalizadas, africana sou não. Se não vemos nenhuma vantagem em fazer filmes de difícil leitura, também não nos parece legítimo sacrificar dados culturais autonomamente existentes e viáveis nos seus contextos de origem a uma interpretação ou explicação etnocêntricas. Se em Nelisita se mata um boi por asfixia (planos 145 a 148), não nos sentimos minimamente obrigados a esclarecer que, naquelas circunstâncias, se procede assim — isso é evidente na projecção — nem tão pouco o porquê de uma tal prática.
Para os Mumuílas da estória, exótico seria matar o boi de outra forma. E ninguém se sente obrigado, num filme europeu, por exemplo, a explicar por que se mata o boi por punção. Desde que para o desenvolvimento da narrativa fílmica o importante seja a morte do boi, e não a forma como ele é morto, não vemos por que haveríamos de nos deter neste segundo aspecto.
Tudo quanto acabamos de dizer pretende sublinhar que o cinema que temos feito quer-se antes do mais cinema tal qual e de forma alguma cinema etnográfico. O cinema etnográfico tem a sua oportunidade, o seu lugar, o direito de recorrer a tudo quanto o define, e mesmo em Angola chegará o tempo em que ele assumirá a posição e o papel interventivo que lhe cabem. Achamos, por outro lado, que se nos desviarmos da discussão sobre qual dos modos deve impor a forma, o do cinema ou o da antropologia, e atendermos ao facto de que estamos debatendo um meio de participação e esclarecimento que utiliza determinado material humano através de processos cinematográficos, chegaremos sem dúvida à conclusão de que interessa obter um produto que corresponda à especificidade do contexto em que se insere. O facto de não se deter objectivamente na fixação de determinados comportamentos, ou de não se apoiar num discurso explicativo, não impede que ele utilize, como material fílmico, configurações que comportam elementos culturais muito diferenciados daqueles que normalmente alimentam os mercados de cinema. Que ele imponha assim um trabalho de terreno com características comuns ao exercício da antropologia, que ele exija um apetrechamento intelectual que terá que recorrer às fontes de conhecimento dispensadas pela antropologia e, finalmente, que se proponha como informação que alarga o conhecimento antropológico sobre a sociedade filmada, são dados que apenas vêm confirmar o nosso ponto de vista.
Que se depara perante os Mumuílas? Uma população angolana face a problemas a que uma determinada configuração cultural confere uma correspondente caracterização regional dentro da realidade geral do país, realidade essa que, como também já se disse, impõe o exercício de um cinema fortemente adjectivo pela actualidade e, logo assim, imperativamente actuante.
O cinema retira a sua especificidade como via de expressão do facto de fornecer imagens que estabelecem uma ideia, ou a seguem, ou a desenvolvem, ou a ilustram. Não é possível em cinema dizer simplesmente — homem — como em poesia, por exemplo. É preciso mostrar o homem.
Em cinema tudo vem adjectivado pela multiplicidade de sinais que constituem o fotograma. Acresce que as condições infra-estruturais do cinema angolano nos impõem a utilização de décors naturais e de material fílmico recolhido mais ou menos directamente da realidade vigente, social, económica, cultural e política. Esta circunstância, que poderia ser considerada como uma limitação, pode outrossim vir ao encontro das exigências do cineasta para quem o cinema constitui o terreno da sua actividade cívica num contexto nacional como é o de Angola. É do cinema, insistimos, que ele retira o salário que lhe permite viver integrado numa sociedade que as circunstâncias colocaram numa fase de “reconstrução nacional” e onde o maior esforço deve ser canalizado para a “resolução dos problemas do povo”, como refere um slogan político que não pode, de facto, e nas suas intenções, sofrer contestação em si mesmo, para além das críticas que possam merecer certas práticas desconcertantes que se apoiam em palavras de ordem deste tipo. O povo angolano, com a sua realidade e os seus problemas, pode assim, facilmente e sem reservas, constituir-se como o material que lhe interessa praticar enquanto Angolano a quem cabe fazer filmes e aos quais ele próprio exige a capacidade de se constituírem como forma de intervenção posta ao serviço do seu objecto de trabalho: o próprio povo que se deixa filmar.
Ao praticar um tal cinema o cineasta terá em vista, logo à partida, fornecer materiais que através da sua posterior divulgação possam informar, apoiar ou influenciar um esforço de que resulte minimizado o fenómeno das roturas e das violências culturais e sociais. O respeito pelas culturas nacionais não vai, muitas vezes e infelizmente, além da preservação e do culto de sobrevivências mais ou menos cristalizadas que apenas apreendem e têm em conta o que constitui a sua substância exterior e mais evidente. Ora o recurso à antropologia terá assim o papel de garantir um suporte significante ao material fílmico de forma a não iludir o significado do mostrável/mostrado: a dimensão do gesto, a dinâmica do tempo, a identidade do espaço.
Posição possível a partir da perspectiva exposta: Procurar fazer filmes que se constituam como peças adequadas à realidade angolana, tendo simultaneamente em conta os interesses de quem deixa filmar, de quem fornece os meios para que se possa filmar, de quem consome o cinema e de quem filma, tudo isto sem perder de vista uma outra exigência: que sejam filmes cinematograficamente válidos. Porque se assim não for vale mais a pena, com vantagens para todos, que o cineasta em questão invista o seu esforço em qualquer outra actividade útil, eficaz, interessante e correcta.
A maioria dos Estados africanos, na qual se situa Angola, constitui entidades políticas em que se verifica uma grande diversidade de culturas nacionais. Coexistem dentro do seu território várias “ex-nações” que preservam com maior ou menor grau de evidência os sinais da sua especificidade cultural e atestam estados muito diferenciados dos desenvolvimentos das forças produtivas, relações sociais de produção e reprodução, etc. A antropologia tenderá assim a fazer-se reconhecer aí como um instrumento indispensável à compreensão dos problemas humanos, à análise das situações que os constituem e à aplicação das soluções que os ultrapassem.
O cinema em Angola, por imperativos de capacidade e de opção, ocupa-se e decorre da realidade nacional. Ao pretender tratar com seriedade os materiais que aborda, o cineasta será levado a procurar junto da antropologia o apoio que esta pode dispensar-lhe enquanto modalidade de conhecimento e método de inquérito e de análise. A antropologia fornecerá um suporte significante aos elementos fílmicos que o ocupam, sem o qual as imagens e o som apenas aflorarão, no melhor dos casos, ou iludirão, o que é mais comum, o significado do que é proposto: a dimensão dos gestos, a marca das atitudes, a dinâmica do tempo, a identidade do espaço.
Angola é um país do Terceiro Mundo. Em relação à antropologia clássica situa-se francamente no hemisfério do observado. Que revolução, porém, estará em curso para a própria antropologia quando o observado se transforma em observador e, dificuldade teórica maior em relação ao ser e ao modo da disciplina, se observa a si mesmo? Que acontece quando o observado assume a palavra? Talvez ocorra aí a oportunidade de ver a antropologia aproximar-se do cinema para beneficiar, por sua vez, dos recursos e do método cinematográficos.
Recusamos entretanto, no contexto de Angola, a hipótese do filme etnográfico. Colocamo-nos assim ao lado da grande maioria dos cineastas africanos, embora não exactamente pelas mesmas razões. Não partilhamos a marcada antipatia que a antropologia lhes merece e que está talvez na base da sua atitude de recusa. Entendemos apenas que Angola não dispõe de recursos cinematográficos, técnicos e humanos, suficientes para encarar como imediatamente viável o emprego do seu potencial produtivo na realização de trabalhos cuja preocupação maior é de aliar o rigor antropológico à expressão cinematográfica.
Angola pode produzir filmes que lhe permitam situar-se perante a sua realidade, em termos de cinema, com uma oportunidade e uma segurança suficientes para assegurar ao tratamento dos problemas humanos o respeito pela globalidade das implicações que os informam.
Proporíamos assim a hipótese de uma prática cinematográfica e antropológica que, aplicada a Angola, retirasse o benefício da sua interacção sem incorrer na fatalidade do filme etnográfico. O cinema recorreria à antropologia, esta recorreria ao cinema e estabelecer-se-ia entre ambos um debate que visasse um equilíbrio de objectivos e de funções.
E é assim que, retomando as considerações atrás enunciadas sobre os interesses implicados na produção de um filme, e acrescentando-lhes as que acabamos de produzir, chegaríamos enfim a uma nova fórmula, síntese final da nossa opinião: Objectivo teórico global para o cinema angolano: produzir filmes cientificamente correctos, socialmente operantes, cinematograficamente válidos, eticamente honestos e publicamente viáveis.
A questão, pensava eu ao deixar Manchester numa manhã de doce Outono e escassa chuva, talvez continue a situar-se, e esteja condenada a situar-se sempre, no exacto campo de uma dificuldade fundamental e antiga: assegurar para um produto que busca a sua especificidade e a sua legitimidade na natureza científica do discurso que utiliza, ou visa utilizar, uma audiência que o consuma de forma a justificar e a garantir-lhe a sua reprodução. Que tal produto existe, quem duvida? As amostras que o revelam e o exibem multiplicam-se pelo mundo, as universidades adoptam-no e os circuitos comerciais, sobretudo através do mercado televisivo, não descuram indícios de procura que a troco de determinadas fórmulas de apresentação justificam a sua distribuição. Mas o drama subsiste.
O seu consumo é precário. Nunca a divulgação da ciência visou o grande público, é bem de ver, e quando o tenta, e consegue, pela via escrita, o que produz são textos que alcançam a sua viabilidade massiva precisamente porque atendem àquilo que o consumo massivo lhes pede: a satisfação de curiosidades e de informações comuns e bastantes às exigências, às necessidades e às capacidades de um público tão quantitativamente expressivo quanto possível. A questão que se põe, portanto, é esta: estará, desde sempre e por definição, o filme etnográfico condenado a não poder existir fora dos parâmetros de facilidade e banalização que afinal lhe garantem um público? Eu estou a falar do filme etnográfico acabado e pronto para projecção pública, sem a qual não tem acesso à república do “cinema”, e não, evidentemente, da footage registada e utilizada como material de pesquisa, nem dos resultados de uma organização desse mesmo registo para exposição dos resultados ou apoio ao ensino em círculos especializados; mais ou menos universitários. Estou a falar daquele artigo de consumo que atesta a profissionalidade de qualquer tipo de cinema e que, para além de tempo e de energia, precisa de dinheiro para ser feito, de estruturas de produção que tenham em conta a qualidade, técnica e estética, do produto final, e de estruturas de distribuição que o projectem enquanto objecto sujeito às dinâmicas da competição. Sem isso não há filme etnográfico, pura e simplesmente porque não há filme.
Em Manchester, neste Festival Internacional do Filme Etnográfico, uma leitura assim estava tornada óbvia. A suportá-lo e omnipresente, achava-se Granada Television e o seu programa Desappearing World.
Desappearing World… Aqui se iniciam as interrogações, se inaugura a questão … Título de uma série, constitui certamente o primeiro gesto de sedução destinado a cativar um público cuja resposta possa garantir a viabilidade de um projecto capaz de abrir um lugar e uma oportunidade aos profissionais de cinema e aos antropólogos a quem se deve essa categoria cinematográfica que dá pelo nome de filme etnográfico (de tão inequívocos méritos na história do cinema, aliás, que seria injusto não olhar por ela). Não comporta a expressão Desappearing World, porém e desde logo, uma atitude ética e teórica que a reflexão moral e política, a consciência e o debate antropológicos pareciam ter de há muito ultrapassado, pela mão também, talvez importe sublinhar aqui, de Gluckman ele mesmo e da própria escola de Manchester? Assim, o que pode servir comercialmente pode não convir à identificação pública de uma disciplina ou de uma ciência, ou iludir mesmo o seu posicionamento teórico mais dinâmico e adequado ao estatuto geral das ciências. Para quantos antropólogos activos e determinantes, o mundo que constitui o seu objecto de observação se lhes apresenta como um mundo em desaparecimento?
Que etnocentrismo, que imobilismo prevaleceria ainda nas fileiras da sua ciência que lhes impedisse a constatação basilar de que os processos que testemunham e analisam nos seus terrenos de pesquisa não são sinais de um mundo que desaparece, mas sim de um mundo que se transforma, de um mundo que emerge, carga positiva, de um Changing World? Estaria essa tribo de homens brancos, meio calvos e grisalhos, e de mulheres indecisas entre os atributos de uma elegância clássica e aqueles que insinuam uma funcionalidade de terreno, disposta a ser encarada como uma elite de zeladores do passado, de sobrevivências culturais, guardiães de uma nostalgia de todo estranha aos actores dos seus filmes, aos agentes sociais que os povoam, prospectores e divulgadores da diferença não para integrá-la num mundo de todos, mas para situá-la num mundo culturalmente hierarquizado? Ao sair de Manchester, naquela manhã de tão doce Outono inglês, eu estava a voltar para casa, estava a voltar para o continente onde tinham sido rodados alguns dos mais notáveis filmes exibidos e premiados no festival que findava, para a terra dos “profetas” e dos healers, dos travellers e dos nomads, para o território das Women who Smile. No meu país, entretanto, o drama do momento era o da troca da moeda para acorrer ao desastre de uma economia incontrolável, era a declaração de falência de um sistema e a balbuciante tentativa da sujeição a um outro, era a guerra a multiplicar ruínas, culturais até, era ao Sul o desacerto a dividir a luta contra o apartheid, era ao Norte a Libéria a expor-se desventrada. Que cada um agora, eu cidadão da África e eu antropólogo branco e grisalho, digerisse a sua imagem de África.
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