quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Já nas Lojas o melhor de António Calvário



O MELHOR DE ANTÓNIO CALVÁRIO Regresso 1960-1966
É tão bom cantar


A única forma de acabar com o nacional-cançonetismo de uma vez para sempre é transformá-lo em ícone pop da cultura portuguesa.
Enquanto isso não acontecer, todo um enorme conjunto de compositores, intérpretes, executantes e editores ficará indistintamente refém da sentença ideológica aplicada a um determinado período e caminho da nossa música (digamos, entre os anos 1950 e 1974) por um tribunal igualmente indistinto que o condenou ao silêncio. Assim não vale.
Escolhamos então outro caminho.
Ao fazer passar o “nacional-cançonetismo” pelo filtro da “pop culture” – o termo tem mesmo que ser este, porque “cultura popular” remete para outros domínios –, poderemos obter algumas revelações pertinentes.
Poderemos perceber, por exemplo, como a indústria musical norte-americana e europeia, nas suas décadas de glória, influenciou e moldou a nossa própria indústria. Por outro lado, ficaremos a conhecer-nos melhor enquanto sociedade produtora de cultura.
Isto é: daquela época, não basta saber da enorme importância musical de José Afonso e de seus empenhos políticos. É preciso também entender os Reis da Rádio.
A antologia que o ouvinte tem em mãos é um excelente começo para este caminho, porque tal história nunca pode ser contada sem António Calvário. Trata-se de uma inteligente selecção escolhida a partir dos 34 EPs (discos de vinil com dois temas de cada lado) gravados pelo cantor para a Valentim de Carvalho (VC) entre 1960 e 1966, os únicos anos em que esteve naquela casa editorial. Se o ouvinte mais sabedor não encontrar aqui um ou outro tema que retém na memória, isso será apenas porque decidiu-se circunscrever a colectânea ao património VC. De resto, está aqui tudo que define Calvário como artista.

António Calvário da Paz nasceu em 1938 em Maputo (então Lourenço Marques), Moçambique, ex-colónia portuguesa.
Iniciou estudos de piano aos sete anos – Chopin fascinava-o e imaginou carreira como pianista. Aos 14, já em Portimão, onde a família tem raízes, estreou-se e surpreendeu como cantor numa festa escolar.
Mudar-se-á para Lisboa, inscrevendo-se no Colégio Académico. É na capital que recebe aulas de canto de uma prima-avó, Corina Freire, nome importante do teatro de revista. Aos 18 anos concorre a uma vaga na estação radiofónica Emissora Nacional.
Aprovado, inicia carreira em espectáculos colectivos e um ano depois obtém o primeiro lugar no II Festival da Canção Portuguesa, no Coliseu do Porto, com o tema “Regresso”, de Maria Almira e Resende Dias, suplantando, entre outros, Alice Amaro, Simone de Oliveira e Madalena Iglésias – com estas duas últimas gravaria duetos.
A vitória é motivo para a VC assinar com ele e editar um single, onde regista também “Sem Ti”, de João Nobre.
Daqui em diante, o sucesso é imparável. Entre 1962 e 1972 será eleito cinco vezes Rei da Rádio, o mais importante título para um cantor da altura medir a sua popularidade.
Outros títulos semelhantes sucedem-se. Ao ganhar, em 1964, com “Oração”, de Francisco Nicholson, Rogério Bracinha e João Nobre, o I Grande Prémio da Canção da RTP, entra simultaneamente no panteão do êxito maior e no patamar da associação política, quer queira, quer não: o triunfo leva-o ao Festival da Eurovisão, que naquele ano se realiza na Dinamarca, em representação de Portugal, onde obtém zero pontos.
É uma clara condenação do júri ao regime ditatorial de Salazar. Nada que perturbe a fama doméstica: naquela época, Calvário pára literalmente as ruas das cidades se decide sair em público. As fãs não o perdem de vista. Neste sentido, foi o mais parecido que o país teve com um Elvis.
Novos palcos acontecerão: os do teatro de revista, de comédia e de opereta a partir de 1963 (em pelo menos 15 títulos); cinco filmes “populares” entre 1964 e 1969 (em 1999 participou ainda no drama Longe da Vista de João Mário Grilo); actuações internacionais e prémios em festivais no estrangeiro. A carreira abranda nos inícios da década de 70, tendo um êxito inesperado em 1979 com a canção “Mocidade, Mocidade”. Ao longo da década de 90 vê surgirem várias reedições e compilações.
O ensinamento de Corina Freire teve, evidentemente, os devidos frutos. A prima-avó ensinou ao jovem António o essencial para que a carreira fosse longa e eficaz. Ninguém pode negar a Calvário um talento duradouro (até hoje – basta vê-lo em qualquer actuação no século XXI). A plasticidade e doçura da sua voz destacam-se num universo onde a maioria dos cantores da sua geração afirmou-se pela gravidade.
O imenso sucesso prende-se certamente com isto e com uma escolha de repertório onde primam as baladas (“Sabor a Sal” é um primor).
Há fados, há marchas, há um pouco de tudo, e twists também: nestes é curioso ver a teatralidade dramática que adapta a um género musical dançável por excelência (é escutar os deliciosos “Meu Coração de Madeira” e “Tu Nunca Saberás”). A maior parte dos temas são de compositores portugueses, não faltando versões de êxitos anglo-saxónicos – incluindo uma de Paul Anka da banda-sonora do filme “O Dia Mais Longo” e, no extremo oposto, as mais conhecidas canções de “My Fair Lady” em dueto com Simone de Oliveira. Há o crooner competente (Sinatra é o seu grande ídolo) em “O Amor Tem Sempre Um Sítio Para Morar” e, é claro, há esse monumento pop português ao lado da sua parceira perfeita, Madalena Iglésias, em “É Tão Bom Amar”.
Em Abril de 2007, António Calvário regressou em concerto ao Maxime, em Lisboa, actuando para uma geração que não o conhecia e voltando a assinar o livro de honra daquele que é o mais famoso cabaret de Portugal, a funcionar desde a década de 40, hoje com direcção artística de Manuel João Vieira. Vieira, com a programação que ali exerce, tem sido o principal responsável na música portuguesa por passarmos a encarar sem pruridos, e já com gosto, nomes como Calvário.
Um dia o termo “nacional-cançonetismo” será mais lúdico do que qualquer outra coisa. Percebermos nessa altura como, para o bem e para o menos bem, a nossa “pop culture” é útil. Dançaremos então ao som de António Calvário. Assim já vale.
(João Macdonald)

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