sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A China imaginária no CCB


A Trilogia dos Dragões fala de uma China imaginária, que se desenhava na cabeça de duas meninas dos anos trinta educadas no ambiente misterioso do bairro chinês do Quebeque, hoje desaparecido. Uma das raparigas, a única personagem que terá contacto com todas as partes da peça, iniciava o espectáculo com algumas palavras que anunciavam, em simultâneo os limites e o interesse do projecto: “Nunca fui à China…”

No início, não havia nada, ou quase nada.

Seis actores, o encenador que os escolheu, com dois cenógrafos e um produtor, e que procuram a rota do Oriente.

Um terreno vazio que se tornou num parque de estacionamento, onde a imaginação e a memória se deveriam aprofundar.
No início, havia três bairros chineses: o de Quebeque, nos anos trinta, que iria servir de pano de fundo ao dragão verde, primaveril, aquático; o de Toronto, próspero nos anos cinquenta, decoração do dragão vermelho, de terra e de fogo; o de Vancôver, dos anos oitenta, florescente, onde se estende o dragão branco, outonal e aéreo.

Existia a China imaginária, do mito e do comércio, Tintim e o lótus azul, Tao, Yi King, mah jong, tai chi, lavandarias e comida chinesa, yin, yang, riquexó, chin chin e made em Hong Kong. Havia a história da tia Marie-Paule casada com um chinês, a mãe nos CWAC (Canadian Women’s Army Corps), o guarda do parque de estacionamento e a sua cabana, e uma bola de vidro que tocava uma música japonesa.
No início, havia Françoise e Jeanne. Têm doze anos, e são inseparáveis. Brincam na loja com caixas de sapatos, recriando a Rua St-Joseph e as suas lojas. Havia Lépine o gato-pingado… Havia a barbearia do pai de Jeanne, onde ela cruza olhares com Bédard, cujos cabelos ruivos a fascinam… Havia a lavandaria do velho Wong, onde chegou, numa noite fresca, William S. Crawford, vindo de Inglaterra na esperança de instalar o seu negócio no Quebeque…
Talvez se descubra nesta peça uma nova resposta para a pergunta feita tantas vezes, entre o fumo do ópio, o tai chi e os cânticos maoístas:
Então, com que é que sonha o chinês da lavandaria do bairro chinês de Saint-Roche?

A Trilogia dos Dragões, Grande Prémio do Festival de Teatro das Américas em 1987, já foi apresentada em mais de quarenta cidades da América do Norte, Europa e Oceânia, de 1985 a 1992.

LA TRILOGIE DES DRAGONS (A TRILOGIA DOS DRAGÕES)

Apresentada na sua versão integral de seis horas, no circuito do Festival de Teatro das Américas de 1987, no hangar número 9 de Vieux Port de Montreal, A Trilogia dos Dragões suscita um momento raro de deslumbramento.

Este espectáculo já deu a volta ao mundo e projectou o criador e encenador Robert Lepage para os grandes palcos mundiais.
O regresso de Lepage ao antigo jardim Zen da sua peça seminal, sugere a sua forma peculiar de conceber uma peça sobre a memória e a transmissão, um momento para nos dar prazer. Remexe, então, as pedras, para que a magia que se desprende da folhagem, com o perfume do Oriente e do Ocidente, irrompa arrebatadamente.
Assistido por uma nova equipa de actores e de designers, Lepage reconstitui os cenários, dando-lhes a forma de uma antiga oficina de caminhos-de-ferro. Num enorme rectângulo de areia e cascalho, situado num parque de estacionamento no meio do nada e apenas iluminado pela claridade nocturna, Jeanne e Françoise reencarnam os personagens principais desta saga, em torno da qual gravitam figuras inesquecíveis: Crawford, Lee Wong, Bédard, Morin, Stella, Irmã Marie-de-la-Grâce, Yukali, Pierre, entre muitas outras.

UMA VALSA NUM BERÇO

Esta fabulosa saga tem a estrutura de uma valsa a três tempos, assinalando a Primavera, o Outono e o Inverno. No primeiro tempo, uma valsa de inocência, de premonições e de destinos em declínio. No segundo tempo, uma valsa de guerra, de viagens e de progresso. No terceiro tempo, uma valsa de morte e de renascimento. Esta longa dança migratória viaja entre a Ásia e o Ocidente até às portas do Oriente, levando-nos através de três bairros chineses: Quebeque, Toronto e Vancôver, passando por Hong Kong, Inglaterra, Tóquio, Hiroxima, a China de Mao, e perseguindo a trajectória do cometa de Halley os percursos de vida projectados na História universal, entre 1910 e 1985.
Movidos por um fluxo de energia vital, os personagens revelam a sua vida através dos sulcos cavados por uma trama imaginária mal explorada, ligadas ao refluxo do Ocidente. O Oriente. Na abertura da peça, três vozes na sombra, com sonoridades familiares e desconhecidas, vozes de mulheres e de homens articuladas, convidam-nos a embarcar numa viagem: “Nunca fui à China. Quando era pequeno, havia casas aqui. Aqui era o bairro chinês. Se esgravatares o chão com as unhas encontrarás água e óleo de motor. Se escavares mais fundo, é provável que encontres pedaços de porcelana e de jade e as fundações das famílias chinesas que ali viveram. Se escavares ainda mais fundo, chegarás à China.”

A MAGIA DO IMPALPÁVEL

No palco de A Trilogia dos Dragões, o movimento é cíclico, marcado por uma dinâmica ternária, quebrando a lógica da oposição binária entre o mito e a realidade, o corpo e o espírito, a intuição e a razão, a interioridade e a exterioridade, o sublime e o trivial, o trágico e o cómico. A obra materializa-se através de impulsos, de sensações sugestivas, de condensações temáticas e metafóricas. A dança, o gesto, a palavra, os objectos e a acção formam um corpus, estimulam esta conspiração poética de falas, de linguagens, de códigos, de referências e de citações, de respirações íntimas daqueles seres que habitam, vivem e morrem nos corpos dos actores. O que nos é dado a ver são cenas representadas simultaneamente no espaço-tempo de uma canção, abraçando o Quebeque, Toronto, Tóquio e uma base militar na Inglaterra; sequências montadas em contraponto dentro de uma narrativa que é comentada; partituras dançadas, reunindo a acção através de movimentos de tai chi e passos de tango; metáforas inseridas na trama anedótica; rupturas de tons e de ritmos que relançam o movimento nas suas oscilações entre o humor e a seriedade, a emoção e a contenção.

TRÊS DRAGÕES NUM RECTÂNGULO DE AREIA
Vários exemplos para descrever a forma harmoniosa da escrita, o seu tecido orgânico, urdido e bordado com múltiplos elementos: caixas de sapatos, sapatos, patins, panos, fósforos, uma bicicleta, uma cadeira rolante, um riquexó, lâmpadas eléctricas, pincéis, telas e uma bola de vidro; fatos e perucas. Personagens e actores que recriam o mundo num rectângulo de areia organizado pela luz, pela música, por coreografias, por imagens projectadas num ecrã de publicidade. Robert Lepage põe em cena o teatro do duplo[1], projectando a sua saga de vida, de morte e de transformação incessante, através de um foco de luz que transporta os personagens e os espectadores para uma China imaginária. O que os espectadores trazem consigo, o que um colectivo de actores, lançados em 1985, numa operação de pesquisa arqueológica e imaginária, é esvaziado num parque de estacionamento do bairro Saint Roch do Quebeque, local outrora ocupado por uma comunidade chinesa.
Cada detalhe de A Trilogia dos Dragões contém todo o espectáculo, reproduzindo o princípio do holograma. Os setenta e cinco anos de vida e as dezenas de vidas que se sucedem ao longo de três gerações depositar-se-ão numa galeria de arte em Vancôver. O terceiro e último movimento da valsa dos dragões acompanha duas jovens artistas, filhas da terceira geração de migrantes e de mestiçagem, numa reflexão sobre a arte e a criação, numa luta constante entre o impulso de vida e a morte, entre a interioridade e a exterioridade, entre a vontade e a alma, entre o visível e o invisível.
Neste teatro-instalação onde os personagens da saga vêm morrer, vê-se o Oriente e o Ocidente a reflectir-se no mar do Pacífico, aldeões chineses a celebrar o ano do dragão, Pierre e Yukali a fazer amor num jardim Zen, guardado por três dragões que repousam num leito de estrelas. Ao mesmo tempo, um piloto da Air France mergulha na noite entre Vancôver e o Japão, a cabeça de Stella fere o metal, Françoise enterra uma bola de vidro, Crawford volta a Hong Kong pela chaminé. Um velho vigia sai da sua guarita e recolhe a bola de vidro, artefacto de uma representação que se extingue.
Antonin Artaud dizia que o teatro era oriental, Ariane Mnouchkine referia-se ao Oriente como o local onde qualquer artista ocidental deve regressar se quiser recuperar o corpo e a carne do teatro.

Em A Trilogia dos Dragões, Robert Lepage põe em cena o teatro do duplo.
Ocidente e Oriente olham-se, à noite, no espelho do Pacífico.
Lorraine Hébert no programa do Festival de théâtre des Amériques
Tradução: Mafalda Melo Sousa

ROBERT LEPAGE
Homem do teatro polivalente, Robert Lepage exerce com igual mestria os cargos de encenador, cenógrafo, autor dramático, actor e realizador. Reconhecido pela crítica mundial, cria e leva a palco obras originais que subvertem as regras de realização teatral clássica, nomeadamente pela utilização de novas técnicas. Inspira-se na história contemporânea e a sua obra, moderna e insólita, transcende as fronteiras.
Nasceu no Quebeque em 1957. Muito cedo, descobriu a paixão pela geografia e, atraído por todas as formas de arte, vem-se a interessar pelo teatro. Em 1975, então com 17 anos, entra no Conservatório de Arte Dramática do Quebeque. Em 1978, faz um estágio em Paris e no seu regresso participa em diversas criações onde acumula os papéis de comediante, autor e encenador. Dois anos mais tarde, ingressou no Théâtre Repère.
Em 1984, criou a peça Circulations que foi apresentada por todo o Canadá e que recebeu o prémio da melhor produção canadiana, no âmbito da Quinzena Internacional de Teatro do Quebeque. No ano seguinte criou La Trilogie des Dragons (“A Trilogia dos Dragões”), espectáculo que teve um grande reconhecimento internacional. Seguiram-se as peças Vinci (1986), Le Polygraphe (1987) e Les Plaques tectoniques (1988). Em 1988, fundou a sua própria sociedade de gestão profissional, Robert Lepage inc. (RLI).
De 1989 a 1993, ocupou o cargo de director artístico do Teatro Francês do Centro Nacional das Artes em Otava. Paralelamente a esta nova função, prosseguiu a sua carreira artística apresentando Les Aiguilles et l’opium (1991-1993/1994-1996), Corolian, Macbeth, La Tempête (1992-1994) e A Midsummer Night’s Dream (1992), peça que lhe permitiu tornar-se o primeiro norte-americano a dirigir uma peça de Shakespeare no Royal National Theatre de Londres.
O ano de 1994 marca uma etapa importante na carreira de Robert Lepage com a fundação de uma companhia multidisciplinar, Le Projet ExMachina, da qual é director artístico. Esta nova equipa apresentou ininterruptamente Les Sept Branches de La rivière Ota (1994), Le Songe d’une nuit d’été (1995), bem como o espectáculo a solo Elseneur (1995-1997). Ainda em 1994, aborda pela primeira vez o cinema fazendo os cenários e realizando a longa-metragem Le Confessionnal, apresentado no ano seguinte na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Em seguida, realizou Le Polygraphe (1996), Nô (1997), Possible Worlds (2000), uma primeira longa-metragem em inglês (versão original) e, por fim, em 2003, a adaptação para cinema da sua peça La Face cachée de la Lune.
Foi com o seu incentivo que o centro de produção pluridisciplinar a Caserne nasceu em Junho de 1997, em Quebeque. Nestes novos espaços, Robert Lepage e a sua equipa criaram e produziram La Géométrie des miracles (1998), Zulu Time (1999), La Face cachée de la Lune (2000), La Casa Azul (2001), The Busker’s Opera (2004), uma nova versão de La Trilogie des Dragons com novos actores (2003), ópera 1984 baseada no romance de Georges Orwell, com direcção musical do maestro Lorin Maazel (2005), Le Projet Andersen (2005), a nova criação de Ex Machina Lipsynch (2007) e The Rake’s Progress ópera de Igor Stravinsky apresentada numa grande estreia no Théâtre Royal de la Monnaie de Bruxelas, em Abril de 2007.
Como consequência do êxito que obteve recebeu numerosos convites que lhe permitiram aplicar os seus conhecimentos artísticos noutras áreas. Foi com sucesso que encenou as óperas Le Château de Barbe-Bleue e Erwartung (1992). Em 1993, assinou a encenação da digressão mundial do espectáculo de Peter Gabriel, The Secret World Tour. Voltou à cena lírica assegurando a encenação de La Damnation de Faust no Japão, em 1999, e posteriormente em Paris em 2001. Em 2000, participou na exposição Métissages no Museu da Civilização de Quebeque. Em 2002, de novo com Peter Gabriel encenou o espectáculo Growing Up Live. Em Fevereiro de 2005, apresentou KÀ, um espectáculo em permanência do Cirque du Soleil em Las Vegas, do qual foi o criador e encenador.
A obra de Robert Lepage foi coroada de numerosos prémios. Entre os mais prestigiados destacam-se, em 1999, la Médaille des Officiers de l’Ordre National du Québec. Em Setembro de 2000, recebeu o Prémio de La SORIQ (La Sociedade das Relações Internacionais do Quebeque), pelo êxito alcançado fora do Quebeque. Em Outubro de 2001, foi galardoado pela Associação dos World Leaders no Harbourfront Centre, o que sublinha uma vez mais a dimensão da sua carreira internacional. Em 2002, a França presta-lhe homenagem concedendo-lhe a Legião de Honra. Foi nomeado Grand Québécois pela Câmara do Comércio do Quebeque e recebeu o Herbert Whittaker Drama Bench Award pela sua contribuição excepcional para o teatro canadiano. No ano seguinte, recebeu o prémio Denise-Pelletier, a mais alta distinção concedida pelo governo do Quebeque no domínio das artes do palco, bem como o prémio Gascon-Thomas concedido pela Escola Nacional de Teatro. Em 2004 foi-lhe atribuído o Prémio Hans-Christian-Andersen confiado a um artista excepcional que contribuiu para honrar internacionalmente o nome de Hans Christian Andersen. Em 2005, recebeu o prémio Samuel-de-Champlain concedido pelo Institut France-Canada pela sua contribuição para a cultura francesa, e o prémio Stanislavski pela sua contribuição para o teatro internacional e os êxitos obtidos nas produções La Trilogie des Dragons (“A Trilogia dos Dragões”), Les Sept Branches de la rivière Ota e The Busker’s Opera. Em 2007, o Festival de l’Union des Théâtres de l’Europe concedeu-lhe o prestigiado prémio Europe. Robert Lepage é o artista mais jovem laureado com este prémio, desde Ariane Mnouchkine, o segundo artista não europeu depois de Bob Wilson e o primeiro cuja base de trabalho não se situa na Europa.



FICHA TÉCNICA E ARTÍSTICA :




Texto: Marie Brassard, Jean Casault, Lorraine Côté, Marie Gignac, Robert Lepage, Marie Michaud
Encenação: Robert Lepage
Assistência dramatúrgica: Marie Gignac
Assistente de encenação: Félix Dagenais
Assistente de encenação, versão original: Philippe Soldevila

Interpretação:
Sylvie Cantin: Uma velha chinesa, Stella, Irmã Marie-de-la-Grâce
Jean Antoine Charest: Morin o Barbeiro, oficial americano, enfermeiro e outros
Simone Chartrand: Françoise e outras
Hugues Frenette: Bédard, Lépine o Gato-pingado, Pierre Lamontagne
Tony Guilfoyle: Crawford, o médico
Éric Leblanc: O velho chinês, Lee Wong, o piloto e outros
Véronika Makdissi-Warren: Jeanne e outras
Emily Shelton: Uma velha chinesa, Yukali (3 gerações)

Música original: Robert Caux
Assistência e arranjos: Jean-Sébastien Côté
Interpretação da música: Martin Gauthier
Cenografia original: Jean François Couture, Gilles Dubé
Assistente de cenografia e de adereços: Vano Hotton
Assistente de adereços: Marie-France Larivière
Desenho de luz: Sonoyo Nishikawa
Desenho original de luz: Louis-Marie Lavoie, Lucie Bazzo
Figurinista: Marie-Chantale Vaillancourt
Assistente: Sylvie Courbron
Multimédia: Jacques Collin
Criação de imagens: Lionel Arnould

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